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Resistência aos Antimicrobianos: Um Problema de Todos Nós

Atualizado: 2 de dez. de 2022


1. Enquadramento

A introdução de antibióticos na prática clínica foi um dos maiores avanços médicos do século XX. De facto, além de tratar infeções, os antibióticos tornaram muitos procedimentos médicos modernos possíveis que, caso contrário, estariam associadas a taxas de mortalidade inaceitáveis. No entanto, a aplicação da lei da seleção natural (descrita pela primeira vez por Darwin e Wallace em 1858), a par de uma utilização excessiva e/ou inadequada, contribuiu para um aumento alarmante da resistência aos antimicrobianos (RAM).(1)

Se virmos a RAM sob o ponto de vista militar, os seres humanos estão a perder a batalha, perante a ameaça de retrocedermos à Era Pré-Antibiótica. De facto, a resistência a todos os antibióticos conhecidos (naturais ou sintéticos) tem ocorrido rapidamente após a sua introdução na prática clínica. A resposta à RAM foi desenvolver novos antibióticos, levando à chamada de “idade de ouro” dos antibióticos, nas décadas de 50 e 60. No entanto, nos anos 70, o pipeline de novos antibióticos esgotou-se, levando a falta de opções de tratamento disponíveis, preocupação que se mantém atualmente.(2)



2. Causas e Ameaças da Multirresistência

Como o European Centre for Disease Control and Prevention (ECDC) alerta, “a RAM é um problema de saúde pública, constituindo um grande desafio global e europeu”.(3) De facto, o ECDC estima que ocorram, anualmente na região Europeia, mais de 865 000 infeções por bactérias RAM, associadas a uma carga de cerca de 1 milhão de DALY’s (Disability-Adjusted Life Years) e 38 000 mortes, como consequência direta. Referem, ainda, que 70,9% destas infeções estão associadas a cuidados de saúde.(4)

Na comemoração do Dia Europeu do Antibiótico deste ano (18 de novembro de 2022), a Comissão Europeia alertou que as consequências económicas da RAM (em custos de saúde e por perda de produtividade) ascendem a 1,5 mil milhões de Euros, sendo considerado pela Health Emergency Preparedness and Response Authority, como uma das três ameaças mais importantes para a saúde humana.(5)

A Organização Mundial de Saúde (OMS) descreve os fatores que promovem a emergência e disseminação de microrganismos multirresistentes, são eles:

1. Prescrição excessiva de antibióticos na saúde humana;

2. Utilização inadequada dos antibióticos na saúde humana;

3. Utilização excessiva de antibióticos na saúde animal;

4. Práticas inadequadas de controlo de infeção na prestação de cuidados de saúde;

5. Medidas sanitárias insuficientes na comunidade;

6. Ausência de desenvolvimento de novos antibióticos.(6)

Na Figura 1 é descrita a interação destes fatores, que possibilita a disseminação destes agentes patogénicos, desde o nível local até ao global. Como Holmes et al. referem, perante esta dinâmica, conclui-se que este problema terá de ser abordado de modo abrangente, incluindo as áreas da saúde humana, saúde animal e ambiente.(8) Tal pressuposto deu origem ao conceito de “Uma Só Saúde” (One Health), abordagem que reconhece que a saúde dos humanos está intimamente ligada à saúde dos animais e o nosso ambiente partilhado.(9)


Figura 1 – Interação entre fatores que promovem a emergência e disseminação de microrganismos multirresistentes. (1) Instituições de saúde: pressão seletiva devido a utilização de antibióticos e transmissão cruzada de microrganismos multirresistentes; (2) Comunidade: transmissão entre humanos e entre humanos e animais; (3) Saúde animal: utilização de antibióticos e transmissão cruzada intra e inter-espécies; Agricultura: contaminação dos alimentos; (4) fluxos migratórios e comércio internacional; (5) e (6) contaminação da água. (adaptado de Swiss Federal Office of Public Health)(7)

Num estudo ecológico, a equipa portuguesa Silva et al. descrevem que quanto maior o consumo de antibióticos em ambulatório e menor o gasto per capita em saúde, maior será a ocorrência de RAM, concluindo que os determinantes para a RAM vão além do consumo de antimicrobianos e incluem fatores socioeconómicos e de organização em saúde.(10)


3. Estratégias de Combate à RAM

Como resposta a este problema mundial, a OMS elaborou, em 2015, um “Plano de Ação Global sobre RAM” que visa a prevenção e o tratamento de doenças infeciosas, com fármacos seguros e eficazes.(11) Outras iniciativas têm sido implementadas por esta organização, como é o exemplo da classificação AWaRe (em que os antibióticos são divididos em 3 grupos: Access, Watch, Reserve), “World Antimicrobial Awareness Week” (celebrada anualmente na semana entre 14 e 24 de novembro, com o slogan “Antimicrobials: Handle with Care”); “Global Antimicrobial Resistance Surveillance System ”, “Global Antibiotic Research and Development Partnership” e “Interagency Coordination Group on Antimicrobial Resistance”, para assegurar as áreas de vigilância, investigação e coordenação internacional, respetivamente.(12,13)

A nível europeu foi publicado “A European One Health Action Plan against Antimicrobial Resistance” em 2017, como compromisso para promoção de boas práticas (potenciando já as iniciativas a decorrer nos vários países); para estimular a investigação/inovação colocar este problema nas prioridades da agenda europeia.(14) Uma das iniciativas que decorreu entre 2017 e 2021, envolvendo 28 países, foi a Joint Action on Antimicrobial Resistance and Healthcare-Associated Infections (EU-JAMRAI), com vários grupos de trabalhos que desenvolveram documentos técnicos (incluindo políticas, orientações de boas práticas, indicadores de vigilância e material para promoção da literacia em saúde) e que poderão ser consultados em https://eu-jamrai.eu/ (Figura 2).(15)


Figura 2 - Símbolo que representa a ameaça global da RAM, resultado de um dos projetos da EU-JAMRAI.(15)

Na sequência desta estratégia europeia, um relatório recente descreve que, até maio de 2021, 25 dos 29 países da região Europeia haviam desenvolvido Planos de Ação para Combater as RAM, no entanto apenas 8 os tinham implementado, com monitorização e avaliação em curso. Concluem que se fizeram importantes avanços nos últimos anos, mas que permanecem lacunas.(16)

A nível nacional, em 2019 é publicado o “Plano Nacional de Combate à Resistência aos Antimicrobianos 2019-23”, com uma abordagem multidisciplinar entre os setores da saúde humana, da saúde animal e do ambiente e com definição dos seguintes objetivos:

  1. Prosseguir a implementação do conceito de “Uma Só Saúde”;

  2. Melhorar o conhecimento sobre a RAM;

  3. Fortalecer a base de conhecimento e evidência através da vigilância epidemiológica, monitorização ambiental e investigação;

  4. Reduzir a incidência de infeção;

  5. Otimizar o uso dos antimicrobianos;

  6. Manter o compromisso e aumentar o investimento sustentado em novos medicamentos, ferramentas de diagnóstico, vacinas e outras.

Neste documento estão descritas 24 metas (10 na área da saúde humana, 12 a nível da alimentação e saúde animal e 2 na área do ambiente).(17) Mais recentemente, foi publicado o Despacho nº 10901/2022, onde há referência à “elaboração e implementação do ‘Plano Nacional Uma Só Saúde de Combate às Resistências a Antimicrobianos’ para os anos de 2023-2030, com natureza interministerial (..) visando a criação de uma Aliança Intersectorial para o Combate às Resistências a Antimicrobianos."(18)


Mensagens-Chave

  • Qualquer uso de antimicrobianos, embora apropriado e conservador, contribui para o desenvolvimento de resistência, mas a utilização desnecessária e excessiva agrava esta emergência.

  • A emergência de RAM ocorre em todo o mundo, implicando a saúde humana, saúde animal e o ambiente, numa lógica de “Uma Só Saúde”.

  • As consequências da RAM são: redução de opções tratamento; aumento da morbi-mortalidade e custos dos cuidados de saúde e sociais.

  • A OMS/ECDC consideram prioritária a implementação de Planos nacionais multissetoriais de combate à RAM. Tais Planos devem ter como objetivos basilares:

    • Reduzir a necessidade da utilização de antimicrobianos,

    • Promover a sua utilização responsável,

    • Incentivar o desenvolvimento/utilização apropriada de novos antibióticos,

    • Preservar o mais possível os antibióticos disponíveis.

Tal como o ECDC alerta “a ação da saúde pública continua a ser insuficiente para combater a RAMna União Europeia, apesar do aumento da consciencialização para este problema e a disponibilidade de políticas e orientações de boas práticas. Concluem que “a RAM será uma preocupação crescente, a menos que os governos respondam de forma mais robusta a esta ameaça.”(19) De facto, todos temos a responsabilidade de nos mantermos atualizados, promovendo as boas práticas na utilização responsável dos antimicrobianos e contribuindo para aumentar a literacia em saúde nesta área.



Referências

  1. Zhen X, Lundborg CS, Sun X, Hu X, Dong H. Economic burden of antibiotic resistance in ESKAPE organisms: a systematic review. Antimicrob Resist Infect Control. 2019;8:137.

  2. Spagnolo F, Trujillo M, Dennehy JJ. Why Do Antibiotics Exist? mBio. 2021;12(6):e0196621.

  3. WHO Regional Office for Europe/European Centre for Disease Prevention and Control. Antimicrobial resistance surveillance in Europe 2022 – 2020 data. Copenhagen: WHO Regional Office for Europe; 2022.

  4. ECDC. Assessing the health burden of infections with antibiotic-resistant bacteria in the EU/EEA, 2016-2020. Stockholm: European Centre for Disease Prevention and Control; 2022.

  5. Website da Comissão Europeia. Press release - Data on antimicrobial resistance (AMR): use of antibiotics in the EU decreases but more needs to be done. Acessível em: https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/IP_22_6951 [acedido a 19/11/2022]

  6. Infografia da OMS. Causes of Antibiotic Resistance. Genebra: Organização Mundial da Saúde, 2017.

  7. Website da Swiss Federal Office of Public Health - Communicable Diseases Division. Acessível em: https://www.bag.admin.ch/bag/en/home/krankheiten/infektionskrankheiten-bekaempfen/antibiotikaresistenzen/wie-breiten-sich-antibiotikaresistenzen-aus-.html [acedido a 23/11/2022]

  8. Holmes AH, Moore LS, Sundsfjord A, et al. Understanding the mechanisms and drivers of antimicrobial resistance. Lancet. 2016;387(10014):176-87.

  9. Website do Centers for Disease Control and Prevention. One Health Basics. Acessível em: www.cdc.gov/onehealth/basics/index.html [acedido a 24/11/2022]

  10. Silva AC, Nogueira PJ, Paiva JA. Determinants of Antimicrobial Resistance among the Different European Countries: More than Human and Animal Antimicrobial Consumption. Antibiotics (Basel). 2021;10(7):834

  11. WHO. Global Action Plan on Antimicrobial Resistance. Geneva: World Health Organization, 2015.

  12. Website da OMS. Antibiotic resistance. Disponível em: www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/antibiotic-resistance [acedido a 23/11/2022]

  13. Website da OMS. ‎AWaRe classification. Disponível em: www.who.int/publications/i/item/2021-aware-classification [acedido a 23/11/2022]

  14. European Commission. A European One Health Action Plan against Antimicrobial Resistance. Brussels: European Commission, 2017.

  15. Website do Joint Action on Antimicrobial Resistance and Healthcare-Associated Infections: https://eu-jamrai.eu/ [acedido a 23/11/2022]

  16. ECDC, EFSA, EMA, and OECD. Antimicrobial Resistance in the EU/EEA - A One Health response. Paris: Organisation for Economic Co-operation and Development, 2022.

  17. DGS. Plano Nacional de Combate à Resistência aos Antimicrobianos 2019-2023. Lisboa: Agência Portuguesa do Ambiente; Direção-Geral de Saúde; Direção-Geral de Alimentação e Veterinária, 2018.

  18. Despacho n.º 10901/2022, de 8 de setembro - Atualiza o Programa de Prevenção e Controlo de Infeções e de Resistência aos Antimicrobianos (PPCIRA).

  19. ECDC. Antimicrobial resistance in the EU/EEA (EARS-Net). Annual Epidemiological Report 2021. Stockholm: European Centre for Disease Prevention and Control; 2022.


Recursos na Web:




David Peres

Médico Especialista em Saúde Pública / Infection Preventionist

Unidade Local de Saúde de Matosinhos / Associação Nacional de Controlo de Infeção




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