Abordagem à gripe zoonótica pelos serviços de saúde pública
- Martín Ribeiro

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A gripe zoonótica enquanto desafio global
Ao longo do último século, os vírus da gripe aviária têm circulado nas populações de aves selvagens, contribuindo para a sua disseminação através das rotas migratórias[1,2]. A transmissão direta de aves selvagens para humanos é rara[3,4], embora já tenha ocorrido a partir de aves domésticas, sobretudo em mercados de aves vivas na Ásia[5,6,7,8]. Os subtipos H5 e H7 demonstram uma elevada capacidade de evoluir para formas altamente patogénicas (HPAI)[1,9], favorecidas por ambientes de elevada densidade aviária[10]. Estas formas emergem através de processos de recombinação e evolução nas populações de aves selvagens e domésticas, sendo a migração das aves selvagens um fator determinante na sua disseminação global[11]. Dada a persistência de HPAI,[12,13] e a sua disseminação silenciosa em aves selvagens[4,14], a vigilância contínua e o controlo da gripe aviária, quer nas populações domésticas quer nas selvagens, são meios fundamentais para reduzir o risco de transmissão zoonótica e prevenir uma futura emergência em saúde pública[15,16]. As estirpes altamente patogénicas e as transmissões ocasionais de vírus H5 e H7 para seres humanos nas últimas décadas demonstram a ameaça real de uma nova pandemia de origem aviária, embora o controlo eficaz possa reduzir o risco para a saúde humana[17].O HPAI foi identificado pela primeira vez em 1996 em aves domésticas no sul da China[18], tendo provocado, no ano seguinte, surtos em aves e os primeiros casos humanos em Hong Kong[19,20]. Após um período de relativa ausência, o vírus reapareceu em 2003, disseminando-se rapidamente pela Ásia e, a partir de 2005, pela África, Médio Oriente e Europa, com uma grande diversidade genética[21]. A partir de 2014, processos de recombinação genética deram origem a novas variantes, como os subtipos H5N6 e H5N8, que se tornaram predominantes a nível mundial até 2020[22,23]. Desde 2021, uma nova estirpe de H5N1, adaptada a aves selvagens, espalhou-se amplamente pela Ásia, África, Europa e Américas, causando surtos em aves domésticas e infeções ocasionais em seres humanos e mamíferos[24,25]. Esta evolução contínua do H5N1 sublinha a importância da vigilância epidemiológica e o papel essencial da saúde pública no controlo dos focos zoonóticos e na prevenção de uma eventual pandemia[25]. Entre 2003 e 1 de julho de 2025, foram notificados à OMS 986 casos humanos de infeção pelo vírus da gripe aviária A (H5N1) em 25 países, com uma letalidade de 48%. Todos os casos estiveram associados a contacto direto com aves ou com ambientes contaminados e não tendo sido identificada a transmissão entre pessoas. Segundo o CDC, entre janeiro e agosto de 2025, foram registadas 26 infeções humanas por gripe aviária H5N1 em todo o mundo, 11 das quais fatais (8 no Camboja, 2 na Índia e 1 no México).
De acordo com a avaliação realizada em julho de 2025 da FAO, OMS e WOAH, o risco global para a saúde pública associado aos vírus da gripe aviária A(H5) é atualmente considerado baixo. No entanto, para pessoas com exposição frequente ou profissional, como criadores ou trabalhadores em explorações avícolas, o risco é classificado como baixo a moderado, dependendo das condições de biossegurança e da situação epidemiológica local. Dada a potencial ameaça para a saúde humana e animal, as organizações internacionais sublinham a importância da notificação rápida, da vigilância integrada e da aplicação de uma abordagem One Health, essencial para monitorizar a circulação do vírus, conter a transmissão entre espécies e prevenir novas infeções humanas resultantes da exposição a animais infetados[26].

Experiência local na Unidade Local de Saúde do Algarve
A conjuntura do Algarve é singular. As características geográficas e a diversidade da fauna e da flora, na área de abrangência da ULS Algarve, em particular da USP em Olhão, constituem fatores relevantes na vigilância epidemiológica de zoonoses e doenças emergentes e reemergentes. A Ria Formosa constitui um ecossistema lagunar costeiro de elevada relevância ecológica, classificada como Parque Natural e sítio Ramsar (ICNF). Estendendo-se por cerca de 18 400 hectares ao longo de 60 km de costa, este sistema dinâmico de sapais, canais, salinas e ilhotes sustenta uma complexa rede trófica que favorece a presença de mais de 200 espécies de aves migratórias, incluindo gaivotas, limícolas e anatídeos[27]. O movimento migratório de aves na Ria Formosa insere-se no contexto das rotas migratórias euro-africanas, que ligam as zonas de reprodução no norte e centro da Europa aos locais de invernada em África. Este sistema lagunar costeiro do Algarve funciona como ponto estratégico de paragem, alimentação e repouso para milhares de aves durante as migrações[28].
Do ponto de vista técnico-operacional, a USP tem estruturado uma resposta integrada, ancorada nos pilares de avaliação do risco, gestão do risco, resposta e comunicação do risco, em consonância com as orientações da OMS, ECDC, DGS e DGAV. Nos últimos anos, a USP em Olhão tem vindo a colaborar estreitamente com o Centro de Recuperação e Investigação de Animais Selvagens (RIAS), no contexto de vários episódios de suspeita e posterior confirmação de infeção por vírus H5N1 em aves selvagens, reforçando a articulação entre a vigilância epidemiológica e a conservação da biodiversidade, sendo o RIAS o principal ponto de receção de fauna selvagem no Algarve.
Um fator crítico para a eficácia da resposta é a colaboração estreita com os parceiros comunitários e institucionais, tais com o RIAS, ICNF, DGAV, SEPNA/GNR e autarquias, da qual resulta uma resposta coordenada e célere.
No caso em particular do RIAS, foram articulados quer procedimentos de rápida comunicação da entrada no centro de aves suspeitas de infeção, quer procedimentos de registo. O aviso precoce, frequentemente antes da confirmação laboratorial e da subsequente comunicação formal pela cadeia hierárquica-institucional, permite à USP em Olhão: (i) verificar e apreciar de imediato o evento e o seu risco; (ii) identificar e estratificar as pessoas potencialmente expostas (quem encontrou, transportou ou contactou com o animal); e (iii) orientar medidas de proteção adicionais e encaminhamento, quando indicado. Por outro lado, foi recomendado e implementado a inclusão, na ficha técnica de cada animal suspeito recebido do registo de forma sistemática dos dados essenciais que permitem rapidamente identificar onde, quando, como e quem realizou a recuperação do animal. Estes registos são partilhados de forma segura com a USP, para avaliação rápida, definição operacional de casos suspeitos/contactos, priorização do seguimento e implementação atempada de medidas. Com esta articulação e procedimentos, reduziu-se a latência entre deteção e intervenção, aumentando a completude e a qualidade dos dados, elevando a precisão e a oportunidade da resposta em saúde pública.
No que respeita à comunicação na área da saúde, sempre que é notificado um evento envolvendo um potencial risco, é elaborado um relatório epidemiológico que inclui a descrição da situação, a avaliação do risco e as medidas a implementar por parte da saúde pública, que é é partilhado com a Delegação Regional de Saúde. Em paralelo, procede-se diariamente à atualização, em tempo real, da situação epidemiológica, das medidas em curso e dos resultados laboratoriais.
Entre outras atividades desenvolvidas, realizaram-se reuniões técnicas interinstitucionais para planear estratégias de intervenção conjunta, tais como transporte das aves, assegurar o controlo ambiental, reforçar as medidas de biossegurança e autoproteção, bem como a identificação das competências e troca de contactos. Para colmatar algumas lacunas, a USP realizou uma sessão de sensibilização com os parceiros para promover e reforçar as boas práticas de controlo de infeção, a correta utilização do equipamento de proteção individual (EPI) e apresentar os riscos epidemiológicos. Um dos principais constrangimentos identificados pelos parceiros foi a falta de EPI para a recolha, transporte e manipulação de aves infetadas.
A vacinação integra o preconizado no Acesso à Reserva Estratégica Nacional de Vacina contra a Gripe Zoonótica[29], referente a uma vacina monovalente inativada e adjuvada, com elegibilidade e administração - em contexto de pré-exposição - a trabalhadores com risco acrescido por exposição ocupacional. A USP do Algarve realizou o levantamento dos profissionais elegíveis para vacinação contra a gripe zoonótica. Do total identificado, 41% dos profissionais aceitaram a vacinação, contribuindo para o reforço da proteção pré-exposição das equipas com maior risco ocupacional.
Num contexto marcado pela crescente complexidade das sociedades, pela emergência ecológica e pela globalização, impõe-se uma atuação integrada, interdisciplinar e colaborativa, em consonância com o quadro conceptual One Health, onde a saúde publica tem um papel central.
Garantir uma vigilância integrada, avaliar e gerir o risco, bem como a tradução do conhecimento científico em ações práticas, assegurando deteção precoce, resposta coordenada e comunicação eficaz remarcam essa centralidade. Assim, a saúde pública reafirma-se como pilar essencial da prevenção e da segurança coletiva, sustentada na cooperação interinstitucional e na utilização rigorosa da evidência científica disponível.
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