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Desafios das Unidades de Saúde Pública em locais de grande dispersão geográfica

As Unidades de Saúde Pública (USP) são responsáveis pela vigilância epidemiológica no território nacional, pela implementação de estratégias locais de prevenção da doença, proteção e promoção da saúde das populações, desempenhando um papel central no sistema de saúde português. As suas atividades garantem diariamente que as populações dispõem de ambientes seguros e saudáveis, sendo executadas por equipas multidisciplinares, com articulação interinstitucional, em toda a área de abrangência da USP. Tais dinâmicas implicam um nível de complexidade importante, seja na gestão, seja na execução de atividades.


Um dos enormes desafios que as USP enfrentam é, precisamente, a dispersão geográfica das suas áreas de abrangência. A elevada abrangência territorial, caracterizada pela dispersão populacional e por longas distâncias entre localidades dificulta não só o processo de vigilância das comunidades, mas também a execução de ações preventivas e de promoção da saúde. Um dos riscos da elevada abrangência territorial é a irregularidade da cobertura das ações de saúde pública, sendo maior a vulnerabilidade em zonas e populações periféricas ou isoladas, precisamente aquelas que carecem de maior proximidade.


As características da população abrangida são outro ponto que desafia a intervenção das USP. As USP com maior dispersão geográfica abrangem em grande parte dos seus territórios, concretamente nas áreas rurais, comunidades envelhecidas e com baixa literacia em saúde. A ausência de proximidade física regular com os profissionais dificulta a criação de laços de confiança e a adesão a programas de promoção da saúde. A comunicação institucional pode ser percebida como distante ou pouco adaptada às realidades locais, reduzindo o impacto das campanhas preventivas.


Outro obstáculo associado à dispersão geográfica prende-se com os recursos humanos. Se é certo que a reforma dos Cuidados de Saúde Primários de 2008 permitiu a unificação de profissionais de saúde pública sob uma mesma coordenação, numa única Unidade, não é menos verdade que tal atualização legislativa, ao deixar de indexar a colocação de profissionais a Centros de Saúde em cada município, e ao definir um rácio de profissionais por número de habitantes implicou, em ULS de elevada dimensão, uma redução do número de profissionais das USP, nalguns casos de forma dramática. Atualmente, em muitos casos, um único profissional de saúde pública é responsável por um território extenso, acumulando funções administrativas e operacionais. E não podemos esquecer que a atualização legislativa de 2008 não foi acompanhada pela necessária revisão de um conjunto de leis, decretos-lei, portarias e regulamentos relativos ao exercício do poder de Autoridade de Saúde. Em grande parte da legislação continuam a ser referidas responsabilidades do “delegado de saúde concelhio”, figura hoje inexistente.


Do ponto de vista infraestrutural, as USP em regiões dispersas enfrentam limitações adicionais. Por regra, as USP funcionam em espaços partilhados com outras unidades funcionais. Cada vez mais tais espaços são disputados pela panóplia de unidades que vão surgindo no seio do Serviço Nacional de Saúde (SNS), sendo frequente os órgãos de gestão priorizarem, por motivos políticos, a criação e reforço de Unidades de Saúde Familiares (USF) e Unidades de Cuidados na Comunidade (UCC), em detrimento do investimento nas USP. Tal disputa não se limita a questões infraestruturais, sendo igualmente disputado, por exemplo, o apoio administrativo. É frequente a partilha de tais recursos com outras unidades, o que reduz a autonomia operacional da USP.


Também a natureza transversal das USP acarreta desafios importantes no que respeita à alocação de viaturas de serviço. Nas USP de elevada dispersão geográfica é frequente a necessidade de atravessar, num único dia de trabalho, as fronteiras de diferentes concelhos. Ora, com a municipalização de competências na área da saúde os profissionais da USP não podem utilizar os veículos facultados por um dado município na área territorial de um outro, reduzindo a capacidade de resposta da saúde pública.


A coordenação intra e interinstitucional constitui outro ponto crítico. Do ponto de vista intrainstitucional, há que assumir que os ventos políticos sopram de feição à constituição de USF e UCC, unidades com carteiras de serviço e incentivos institucionais ou financeiros bem definidos. O que sobra de mecanismos claros de contratualização interna a tais unidades, escasseia nas USP, sejam elas de pequenas ou grande dispersão geográfica. A situação torna-se ainda mais dramática quando a propalada necessidade de investimento na prevenção, no core da qual deveria estar a USP e suas atividades, não cola com a realidade do desinvestimento a que tem sido votada a área da saúde pública no SNS, que não dispõe de sistemas de informação unificados e robustos nem, como vimos acima, de recursos humanos e técnicos suficientes.

Ainda no que diz respeito à coordenação intrainstitucional, recorde-se que, desde 2008, o legislador preconiza que as USP sejam únicas por ULS, num movimento centrípeto de unificação de profissionais e procedimentos sob uma mesma coordenação e orientados para os mesmos objetivos e metas. Nas USP de elevada dispersão geográfica, tal força centrípeta legislativa tem de ser combatida diariamente pelos profissionais e pelas coordenações, através do movimento centrífugo de deslocações para trabalho de campo, junto das comunidades e territórios, ultrapassando todos os obstáculos que a ausência de viaturas e ausência de espaços de trabalho descentralizados acarretam.


Tais fragilidades intrainstitucionais têm, depois, grande impacto na cooperação interinstitucional. Uma USP que tenha de se bater internamente no seio do SNS, por mais recursos e maior representatividade no investimento, é uma USP enfraquecida na capacidade de articulação com parceiros externos. O diagnóstico das necessidades torna-se mais desafiante e difícil, com riscos de menor perceção das necessidades sentidas e, como tal, com menor capacidade do próprio SNS responder de forma custo-efetiva aos problemas de saúde.

 

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A pergunta que se impõe é: o que pode ser feito?


A resposta tem tanto de simples como de abrangente – tem de existir vontade política para dotar as USP dos recursos que lhes permitam cumprir a sua missão junto da comunidade. Simples, porque depende simplesmente da decisão dos responsáveis políticos que tutelam a área da saúde. Se for colocado tanto empenho no investimento em saúde pública como tem sido colocado na constituição de USF, UCC ou Centros de Responsabilidade Integrados (CRI), a capacidade de resposta às necessidades das populações na área preventiva e de promoção da saúde tornar-se-á mais robusta. Abrangente porque tal vontade política deve abranger um conjunto de áreas organizacionais, de recursos humanos e de recursos técnicos e infraestruturais. Tais políticas poderiam incluir:


  1. Do ponto de vista organizacional:

    1. Uniformizar a organização dos serviços de saúde pública locais, através da criação de Departamentos de Saúde Pública (DSP) em cada ULS, que permitam abranger todo o conjunto de unidades e serviços que partilhem da mesma missão. Tal investimento permitiria alocar aos DSP profissionais e recursos que uma simples Unidade não tem capacidade para ter ou gerir;

    2. Criar sistemas de informação uniformes em termos nacionais, que permitam o registo do trabalho efetuado, a monitorização e avaliação dos resultados;

    3. Definir mecanismos de contratualização interna, que permita definir incentivos institucionais e financeiros mediante o atingimento de objetivos em saúde, num modelo que se pode assemelhar aos CRI;

  2. Do ponto de vista dos recursos humanos;

    1. Redefinição do cálculo de rácio de profissionais das USP. A alocação de profissionais nas USP não pode simplesmente estar indexado ao número de habitantes abrangidos. Deverá, também e sobretudo, relacionar-se com a dimensão do território e o número de instituições comunitárias com que terá de interatuar. Há que reconhecer a diferença na capacidade de trabalho de um Médico de Saúde Pública (MSP) que tenha a cargo 1 Município com 25.000 habitantes ou de um MSP que tenha a cargo 25.000 habitantes dispersos por 5 Municípios, com 5.000 habitantes cada um e com todo o conjunto de entidades e instituições de base municipal;

    2. Criação de incentivos financeiros para fixação de profissionais das USP em áreas de manifesta carência de profissionais face aos rácios estabelecimentos;

  3. Do ponto de vista dos recursos técnicos e infraestruturais:

    1. Destinar às USP os espaços físicos essenciais ao exercício de funções dos seus profissionais, nos diferentes municípios abrangidos pela USP;

    2. Alocar um número de viaturas suficiente e totalmente dedicado às USP, com possibilidade de deslocações interconcelhias.


Em suma, as USP que abrangem áreas geográficas extensas e dispersas enfrentam desafios importantes, que se prendem com a grande distância entre comunidades, a variabilidade das populações, a carência agudizada de recursos humanos, a falta de investimento em infraestruturas e as dificuldades na cooperação intra e interinstitucional que os condicionalismos acarretam. Cada USP tem-se adaptado às realidades locais, criando ferramentas de trabalho próprias, adaptando um nível de resposta mais ou menos centralizado, batendo-se diariamente por mais recursos e mais investimento, mas partindo sempre de uma posição mais desfavorável face a outras unidades e serviços do SNS.


Tais soluções locais, como não hierarquicamente coordenadas ao nível regional e nacional, podem trazer benefícios localizados de curto prazo, mas que dependem essencialmente das vontades dos decisores locais do momento, não correspondendo a soluções sustentadas e uniformizadoras.


Assim, a única resposta que se pode traduzir numa melhoria sustentada e de longo prazo da resposta dos serviços de saúde pública é, precisamente, um comprometimento político nacional que garanta o investimento em saúde pública, nas USP e seus profissionais.




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Mário Rui Salvador

Médico de Saúde Pública na Unidade Local de Saúde da Guarda



 
 
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