Consulta do viajante: entre o mundo que se visita e a Saúde Pública que se pratica
- Beatriz França
- há 2 dias
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Os viajantes de hoje são diversos: turistas, trabalhadores de curta e longa duração, voluntários em zonas remotas, estudantes em intercâmbio, migrantes, ou mesmo os mais recentes nómadas digitais. A sua preparação deve ir além das exigências administrativas: é necessário avaliar os riscos para a saúde, compreender o contexto clínico e epidemiológico do viajante e do(s) local(is) de destino e personalizar a consulta, para promover comportamentos seguros. Portanto, no mundo global, onde o trânsito internacional de pessoas é constante, a consulta do viajante adquire uma importância crescente. Muito para além de uma lista de vacinas ou da prescrição de um comprimido para a malária, esta consulta representa uma oportunidade privilegiada para intervir de forma antecipada e orientada na proteção da saúde individual e coletiva.
Existem diferentes perspetivas quanto à realização das consultas do viajante por Médicos de Saúde Pública (MSP); contudo, independentemente da opinião individual sobre o tema, trata-se de um serviço necessário, útil e relevante - tanto para o indivíduo como para a população - e, como tal, merece ser assegurado com qualidade. A participação dos MSP pode representar uma mais-valia nesse contexto, sem prejuízo do papel igualmente importante de outros profissionais com competências clínicas específicas, como médicos de Medicina Geral e Familiar ou Infeciologistas, especialmente em situações de consulta pós-viagem ou no seguimento clínico de eventuais complicações. Trata-se, em última análise, de uma área de intervenção onde a complementaridade entre diferentes especialidades deve ser reconhecida e valorizada.
Com formação específica em áreas como a vigilância epidemiológica, comunicação em saúde e promoção da saúde, os MSP estão particularmente capacitados para fazer da consulta do viajante uma intervenção na proteção e promoção da saúde individual e da comunidade. Ao entrar no consultório, o MSP leva consigo uma perspetiva informada pelo conhecimento da saúde global, da situação epidemiológica, a experiência da intervenção comunitária e o entendimento das dinâmicas dos sistemas de saúde.
Os MSP têm ainda a capacidade de cruzar dados locais e globais, priorizar a informação essencial a transmitir ou adaptar conselhos à evolução de surtos internacionais, como o caso recente da Mpox enquanto emergência de saúde pública de âmbito internacional, ou surtos de dengue ou cólera. Esta consulta é também uma oportunidade para cumprir estratégias de saúde pública mais amplas, como o Programa Nacional de Vacinação, o Programa Nacional de Eliminação do Sarampo, o Programa Nacional de Erradicação da Poliomielite e o Programa de Prevenção e Controlo de Infeções e de Resistência aos Antimicrobianos. Neste sentido, não podemos ignorar os princípios e obrigações definidos no Regulamento Sanitário Internacional. O seu cumprimento exige capacidade de prevenção, vigilância, controlo e resposta - competências centrais dos serviços de saúde pública e diretamente mobilizáveis neste contexto.
Assim, a consulta do viajante pode ser mais do que um ato clínico individualizado e pontual. Quando realizada pelo MSP, transforma-se num momento de capacitação do cidadão, de reforço da vacinação, de consciencialização sobre resistências aos antimicrobianos, e até de vigilância passiva para doenças emergentes. Esta visão ampla permite dotar o viajante de conhecimentos e medidas preventivas que reforçam o seu papel como agente de saúde pública.

Apesar do seu potencial, persistem alguns desafios. Do ponto de vista do utente, existem dúvidas sobre quando recorrer a este serviço, por vezes desconhecem a sua existência e, não raras vezes, há uma desvalorização dos riscos associados à viagem, o que pode condicionar a adesão às medidas propostas. Do lado operacional, destacam-se a necessidade de gerir uma consulta com elevada quantidade de informação a transmitir, a que acresce a consulta de dados epidemiológicos fidedignos e atualizados e a execução de procedimentos burocráticos e documentais. Estas barreiras, contudo, podem ser transformadas em oportunidades de melhoria, aproveitando as competências dos MSP na análise e comunicação de dados e informação em saúde, na colaboração interinstitucional no âmbito da vigilância epidemiológica e na utilização e desenvolvimento de sistemas informáticos de apoio às suas atividades. A criação de protocolos mais ágeis e o desenvolvimento de plataformas digitais que permitam o reporte de eventos durante ou após a viagem - possibilitando recolher feedback e melhorar o conhecimento sobre as condições e desafios vividos pelos viajantes - são exemplos de soluções que podem aumentar a eficiência, a qualidade e o impacto desta intervenção, preservando sempre a sua dimensão estratégica em saúde pública. Superar estes desafios é essencial para que a consulta do viajante cumpra todo o seu potencial enquanto intervenção de proximidade, capaz de proteger não apenas quem parte, mas também as comunidades que permanecem.
Se a Saúde Pública se quer mais próxima, proativa e resiliente, então deve também estar presente em cada oportunidade de contacto com os cidadãos, sendo esta uma dessas oportunidades. E os Médicos de Saúde Pública não só têm as ferramentas para a qualificar, como a responsabilidade de a transformar num verdadeiro momento de prevenção e proteção coletiva. Porque entre o mundo que se visita e os comportamentos de saúde que se praticam, a consulta do viajante é uma ponte que liga o indivíduo à proteção coletiva.

Beatriz França
Médica Assistente de Saúde Pública na ULS de Santo António
Consulta do Viajante no CVI do Porto
Curso de Pós-Graduação em Medicina do Viajante e Populações Móveis (FMUP)