A insustentável ausência no ensino médico
- José Durão
- 28 de jul.
- 4 min de leitura
Todo o mundo é composto de mudança. No contexto da saúde pública, o célebre “novo normal” tem sido moldado por transformações demográficas e socioeconómicas, progressos científicos e tecnológicos, tensões políticas e conflitos armados, migrações, alterações climáticas, insegurança alimentar e pandemias. Este “novo normal” refere-se, assim, a um estado constante de risco que, por seu turno, exige um estado constante de preparação, obrigatoriamente alicerçado numa força de trabalho em saúde pública coesa, consciente e altamente diferenciada, incluindo, e sobretudo, os médicos. Alinhar as três etapas de construção dessa força de trabalho - formação pré-graduada, formação pós-graduada e posterior exercício de funções como especialista - é, por isso, imperativo. Contudo, a primeira destas três etapas está, amiúde, aquém do seu potencial influenciador, o que naturalmente se repercute nas etapas subsequentes.
A formação médica pré-graduada em Portugal incorpora com frequência disciplinas de epidemiologia, medicina preventiva e saúde comunitária. Porém, estas são tipicamente fragmentadas em vários módulos ou anos, com diferentes pesos e abordagens entre escolas médicas. Algumas escolas incluem a saúde pública como uma unidade curricular específica e obrigatória, enquanto outras a dispersam entre unidades como medicina comunitária ou medicina preventiva. A carga horária varia entre poucas dezenas de horas teóricas e seminários até unidades curriculares com componente prática e projetos de intervenção. Os objetivos de ensino podem alinhar-se com um perfil de trabalho mais académico ou mais comunitário. Por fim, a presença de médicos de saúde pública formadores varia substancialmente, desde corpos docentes quase inteiramente constituídos por médicos (falhando na interdisciplinaridade) até à sua representação quase inexistente, substituídos por profissionais de epidemiologia e estatística (falhando na base médica fundamental). De resto, a subutilização e reduzida influência dos médicos de saúde pública no ensino pré-graduado (quando foi a última vez que um médico de saúde pública dirigiu uma escola médica?) é também um reflexo do estatuto periférico que a saúde pública ocupa no imaginário coletivo da saúde do nosso país, ancorado na medicina curativa, hospitalar e tecnologicamente avançada.
Na ausência de uma orientação curricular comum ou recomendação oficial sobre a formação pré-graduada em saúde pública - algo que o Conselho de Escolas Médicas Portuguesas e a ANMSP poderiam trabalhar - as escolas enquadram os seus curricula, genericamente, nas operações essenciais da saúde pública definidas pela Organização Mundial da Saúde e, em grande medida, nas doze competências essenciais do médico de saúde pública elencadas pelo Colégio de Especialidade da Ordem dos Médicos. Daqui decorre que as mesmas fragilidades operacionais que acompanham estes referenciais teóricos acabam por afligir o ensino da saúde pública, que tem sido centrado sobretudo na vigilância, na epidemiologia e na investigação. Aspetos de comunicação e promoção, de liderança e gestão, de avaliação de impacto e advocacia, fundamentais em contexto de trabalho real e, acima de tudo, para que consigamos, um dia, reformar verdadeiramente a prática da saúde pública com consequências macroscópicas tangíveis e duradouras, têm ainda muito pouco peso na formação pré-graduada (e também, acrescente-se, na pós-graduada). Estes temas surgem frequentemente como tópicos acessórios ou opcionais, o que enfraquece a compreensão do papel sistémico da saúde pública no funcionamento global dos sistemas de saúde.
A mudança faz-se transformando as disciplinas clínicas para adquirirem, sempre que possível, um olhar preventivo, abrangente e que vá às raízes da saúde e da doença. Por outras palavras, a transmissão de conhecimentos e competências de uma área basilar - porque se confunde com o próprio conceito de sociedade e que, por isso, serve de palco a todas as outras áreas do saber médico - como a saúde pública, só faz completo sentido se estiver continuamente presente na formação médica. Adotar um ensino transversal ao longo do curriculum médico traduzir-se-ia na promoção de uma visão mais integradora da saúde para além da relação individual médico-doente, incluiria a análise de determinantes sociais e ambientais no diagnóstico e no plano terapêutico, e estimularia o raciocínio crítico sobre políticas de saúde, desigualdades e acesso aos cuidados. No fundo, uma força médica que, independentemente da sua área de especialização, estaria capacitada para interpretar indicadores de saúde, reconhecer padrões populacionais e o impacto de fatores socioeconómicos, culturais e ambientais na saúde dos doentes, e lidar com situações de crise, desinformação e mudança de comportamentos.

Como efeito secundário positivo, poderia incentivar vocações para a especialidade de saúde pública, muitas vezes desconhecida ou mal compreendida. Uma realidade que, não obstante o reforço de entradas nos últimos anos, persiste, quer pelas lacunas formativas mencionadas, quer pela incapacidade de nos situarmos concretamente no ecossistema de saúde e de nos pormos de acordo quanto ao âmbito, aos limites e, acima de tudo, ao potencial do médico de saúde pública. Ou seja, encontramos hoje um duplo desafio e, portanto, uma dupla oportunidade. A moderna saúde pública clama, por um lado, por uma redefinição de prioridades ajustadas a um país europeu de século XXI dramaticamente melhorado do ponto de vista higiossanitário mas a braços com um envelhecimento populacional e uma preponderância de doenças crónicas com forte impacto no sistema de saúde e na economia nacional, e, por outro lado, por uma aposta muito mais ambiciosa e visionária no ensino e preparação de novos profissionais.
Neste sentido, diretrizes europeias e internacionais destacam a importância de adoção de uma educação médica baseada em competências e segundo percursos formativos flexíveis e personalizados, um salto pedagógico que Portugal ainda não foi capaz de dar, inclusivamente no internato médico. A saúde pública tem de se posicionar para assumir esta abordagem desde o início da formação, evoluindo para uma integração curricular contínua e interdisciplinar que usa metodologias ativas de ensino, que inclui desde cedo estágios observacionais e projetos comunitários, e que cobre obrigatoriamente temas como determinantes sociais, equidade em saúde, one health e sustentabilidade. Cabe também, e diria mesmo principalmente, aos médicos de saúde pública entender a urgência desta metamorfose e liderar esse movimento transformador, não apenas pela saúde de todos, mas pela própria sobrevivência da especialidade num mundo cada vez mais complexo e interdependente.

José Durão
Médico de Saúde Pública na ULS Almada-Seixal
Presidente do Conselho Nacional do Médico Interno da Ordem dos Médicos