A primeira Unidade Local de Saúde (ULS) nasceu em 1999, em Matosinhos, entre 2007 e 2012 foram criadas mais sete ULS (2 no Norte, 2 no Centro e 3 no Alentejo). Este ano está prevista a criação de mais 12 ULS – 4 anunciadas em dezembro de 2022 (2 no Norte e 2 no Centro), e que já apresentaram o seu Plano de Negócios e 8 que estão em processo de elaboração do Plano de Negócios (3 no Norte, 4 em Lisboa e Vale do Tejo (LVT) e 1 no Alentejo). Dito isto, em 2023, a região do Alentejo será a primeira constituída integralmente por ULS, LVT terá as suas primeiras ULS, e o país ficará com um total de 20 ULS.
De acordo com o DL nº 207/99, de 9 de junho, que cria a primeira ULS, esta reorganização do sistema de saúde surge em reposta às “exigências cada vez maiores das populações em matéria de acesso e satisfação das suas necessidades de saúde” e permite criar “condições de integração dos cuidados, coletivizando os problemas que cada nível de cuidados enfrenta sozinho, partilhando responsabilidades e recursos”.
Acredita-se por isso, que quando se fala em integração de cuidados, não se pressuponha a absorção de um nível de cuidados pelo outro, mas sim uma coresponsabilização paritária da abordagem, como um todo, ao utente, ao longo do ciclo de vida – indo desde a evicção da instauração de doenças, através da prevenção da doença e promoção da saúde, até ao diagnóstico, tratamento e reabilitação das mesmas.
Como tal assume-se que os Cuidados Hospitalares, os Cuidados de Saúde Primários (CSP) e os Cuidados de Saúde Pública devam estar ao mesmo nível. Mesmo nível de responsabilização pela saúde da comunidade servida por esses cuidados, mesmo nível de articulação com os órgãos de gestão da ULS, mesmo nível de priorização e valorização das suas atividades.
Não foi essa, contudo, a realidade nas ULS criadas até ao momento. Pudemos ouvir por diversas vezes, descrever uma ULS como “hospitalocêntrica” e ser questionado o impacto deste modelo de gestão nos ganhos em saúde para a população.
Apesar de poucos, alguns estudos foram feitos acerca das ULS:
Em 2015, a Entidade Reguladora da Saúde, publicou um estudo sobre o desempenho das ULS entre 2011 e 2013, que afirmava que entre áreas com ULS e sem ULS:
O grau de proximidade dos CSP à população é idêntico;
O acesso a cirurgias não teve diferenças significativas;
O tempo médio de internamento é superior nas ULS;
O número de internamentos por Ambulatory Care Sensitive Conditions (ACSC) foi superior nas ULS (com exceção do Baixo Alentejo);
Em 2022, uma revisão sistemática publicada pela APAH, ressalvava a importância dos objetivos basilares na criação das ULS – melhorar o acesso, maximizar a eficiência produtiva, fomentar a qualidade e melhorar o desempenho económico-financeiro – mas teve dificuldade em concluir que existem melhores resultados nesta integração vertical, nomeando alguns dos constrangimentos ao seu sucesso, como por exemplo o modelo de financiamento, a gestão dos recursos humanos e a ausência de estudos prévios para avaliar as especificidades de cada local.
No que toca à área de Saúde Pública, esta assume um diferente papel em cada ULS, estando alocada ao Departamento dos Cuidados de Saúde Primários na maioria, com diferentes níveis de articulação junto dos Diretores Clínicos (alguns são coadjuvados por um Médico de Saúde Pública), e com maior ou menor representatividade nas Comissões de Apoio Técnico criadas em cada ULS.
Uma coisa é certa, se o objetivo das ULS é promover a melhor coordenação entre os vários níveis de cuidados de saúde, melhorar o acesso aos serviços de saúde, simplificando o percurso do utente no sistema de saúde e garantindo a obtenção de ganhos em saúde para a comunidade, o papel dos Serviços de Saúde Pública, é preponderante e pode ser decisivo para o sucesso das novas ULS que estão a ser criadas. Reside na Saúde Pública, a centralidade do utente, inserido numa comunidade que é o nosso objeto de atuação; as nossas intervenções focam-se não só nos problemas de saúde de cada indivíduo, como também nas suas necessidades, e na visão populacional, tendo por premissa manter as pessoas saudáveis, ao contrário de apenas dar resposta ao seu problema de saúde. Temos competências em planeamento, vigilância epidemiológica, promoção da saúde, ciência dos dados, qualidade, entre outras áreas que permitirão orientar as prioridades e dar o devido apoio técnico para a prestação de Cuidados Hospitalares e CSP com elevados padrões de qualidade e eficiência, e simultaneamente atuar no âmbito da prevenção da doença e promoção e proteção da saúde, o que acarretará a médio-longo prazo menos encargos para a ULS.
Neste sentido a ANMSP tem trabalhado em proximidade, ao longo dos últimos meses, com a Direção-Executiva do SNS, que parece querer dar um novo rumo às ULS que irão ser criadas, garantido que erros do passado não sejam repetidos, e que o modelo de gestão de futuro seja efetivo e focado na obtenção de ganhos em saúde, contribuindo para um sistema de saúde mais equitativo e sustentável e para uma população mais saudável.
Advogam-se por isso, certas premissas para a organização dos serviços de Saúde Pública a nível local, numa ULS:
Deve ser criado um Departamento Local de Saúde Pública (DLSP), dotado dos serviços que atualmente se inserem numa Unidade de Saúde Pública (USP), e daqueles estabelecidos para os Serviços de Investigação, Epidemiologia Clínica e de Saúde Pública Hospitalar (SIECSPH). Tal traz vantagens no que toca à integração de serviços com competências semelhantes, permite a criação dos SIECSPH, que não se encontram implementados na maioria dos Hospitais, e potencia a atuação da Saúde Pública ao mesmo nível e, ela própria como elemento integrador, entre os CSP e Hospitalares.
Importante a integração de profissionais da USP, futuramente DLSP, nas Comissões de Apoio Técnico que digam respeito às Funções Essenciais de Saúde Pública.
Deve ser garantida a articulação dos serviços de Saúde Pública com a URAP e/ou serviços de psicologia, nutrição, fisiatria, entre outros essenciais à implementação de projetos de Saúde Pública, com dotação de tempo para os mesmos e/ou garantida a possibilidade de contratação para os serviços de Saúde Pública de profissionais de outras categorias, com perfil para projetos comunitários.
Importante que a integração ocorra ao nível dos sistemas de informação, que haja um sistema único, e que haja o devido acesso aos dados resultantes da utilização dos serviços de saúde, bem como a criação de um sistema de informação adequado aos serviços de Saúde Pública.
Deve haver um Médico de Saúde Pública no Conselho de Administração da ULS. É importante reforçar a visão de Saúde Pública na gestão executiva, garantindo não só a sustentabilidade económico-financeira da instituição, como também a prestação de serviços de qualidade com impacto na população, e que tal se reflete nos planos de atividades e na visão da ULS. Aliás, uma das competências do conselho de administração da ULS, segundo o estatuto do SNS, é “definir as linhas de orientação a que deve obedecer a organização e o funcionamento do estabelecimento de saúde, nas áreas clínicas e não clínicas”, pelo que faria sentido, que houvesse assento neste órgão, não só de representantes das áreas clínicas, como também das áreas não clínicas.
Não menos importante é que a contratualização das ULS deve ser revista, e também esta refletir a integração que se espera entre Cuidados Hospitalares, CSP e Saúde Pública. E sobretudo ter por base o Plano Local de Saúde e indicadores de desempenho que reflitam os ganhos em saúde para a população.
Atualmente, os elementos de Saúde Pública que pertencem aos grupos de trabalho constituídos para criação das respetivas ULS, podem contribuir, através do Plano de Negócios, e do processo de discussão entre Centro Hospitalar e ACES, para que a visão, missão e eixos estratégicos da sua futura ULS tenham por base estes princípios, e se perspetive a devida valorização e enquadramento dos Serviços de Saúde Pública. Contudo, um Plano de Negócios, é o que o próprio nome indica, e tem um propósito limitado, destinando-se ao Ministério das Finanças. O verdadeiro compromisso será efetuado em fases futuras, após o Conselho de Administração estar nomeado, através do Plano de Atividades e de outros instrumentos de gestão, bem como das políticas internas que forem adotadas.
Independentemente do modelo de gestão, em que cada USP se insira, ULS ou ACES, é fundamental ter hierarquias e líderes que partilhem das visões que têm sido discutidas nos fóruns de saúde nos últimos tempos – conceitos como “ganhos em saúde”, “one health”, “planeamento estratégico”, entre outros, não podem ser só chavões para usar em colóquios, têm que ser termos operacionalizáveis. Se assim for, acredito que as futuras ULS possam apresentar resultados positivos em alguns anos, e que os Serviços de Saúde Pública possam desempenhar as suas funções em toda a sua potencialidade. Só o futuro dirá se esta visão das ULS é o Mundo Ideal ou o Mundo Real.
Gisela Leiras
Médica de Saúde Pública no ACES Grande Porto IV - Póvoa de Varzim / Vila do Conde