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“Se não nós, quem? Se não agora, quando?”: Advocacy como competência essencial em Saúde Pública

Num contexto marcado por múltiplas crises - conflitos armados, alterações climáticas, agravamento das iniquidades, crescente influência dos interesses comerciais sobre a saúde individual e colectiva, e aumento da hesitação vacinal, com consequentes surtos de doenças preveníveis pela vacinação -, o papel da Saúde Pública enquanto promotora do bem-comum, alicerçada na evidência científica, assume-se indispensável.


No mês em que se assinala o Dia Mundial Sem Tabaco, importa recordar o contributo histórico da Saúde Pública, a nível nacional e internacional, na defesa de medidas que protegem a população dos efeitos nocivos do tabaco. Os avanços alcançados no controlo do tabagismo resultam de décadas de trabalho sustentado em dados epidemiológicos robustos, campanhas de literacia em saúde, e mobilização social e política [1]. Trata-se de um exemplo paradigmático do impacto da intervenção pública dos profissionais de saúde na defesa intransigente de políticas que salvaguardam a saúde da população.


Face à politização da ciência e à proliferação da desinformação, que minam a confiança da população nas instituições e nos profissionais de saúde, o papel de advocate do Médico de Saúde Pública torna-se ainda mais relevante. O conceito de advocacy em Saúde Pública traduz-se na promoção de mudanças em fatores estruturais, como leis, regulamentos, políticas, práticas institucionais, padronização de produtos e preços que influenciam as escolhas individuais e os ambientes em que estas ocorrem [1].


A Epidemiologia, ciência fundamental da Saúde Pública, é geradora do conhecimento necessário para a advocacy. No seio da comunidade de Epidemiologia tem existido uma tendência histórica para dissociar a produção da evidência da sua translação para o mundo real [2, 3]; não obstante, esta separação tem sido crescentemente contestada, relevando a necessidade de um posicionamento mais ativo dos epidemiologistas e que se reflecte, mesmo, em directrizes éticas da profissão [2, 4, 5, 6]. Para os Médicos de Saúde Pública, essa distinção é praticamente inexistente, uma vez que não só a produção de conhecimento, mas também a sua interpretação, comunicação e aplicação visando influenciar políticas e decisões em prol da saúde populacional fazem parte integrante da prática profissional.


Reflexo disso são as Funções Essenciais de Saúde Pública (FESP) definidas pela Organização Mundial da Saúde, que reconhecem a advocacy como componente da FESP 3 (public health stewardship) e FESP 7 (promoção da saúde) [7]. Destacam-se, nomeadamente, a importância de defender um planeamento, políticas e estratégias orientados para a saúde pública (subfunção 3.1) e de realizar ações de advocacy e comunicação sobre saúde baseadas em evidência para promover comportamentos e ambientes socioecológicos saudáveis (subfunção 7.4). Salienta-se ainda a importância de ter uma força de trabalho de Saúde Pública treinada, capacitada e preparada (FESP 9) [7]. A Federação Mundial de Associações de Saúde Pública (WFPHA) reforça a necessidade de formar profissionais capacitados para transformar evidência em políticas públicas [8]. Em Portugal, esta visão está reflectida no Referencial de Competências Essenciais ao Exercício do Médico Especialista em Saúde Pública, que inclui a capacidade de associar o conhecimento das disciplinas de saúde pública com informação técnica do diagnóstico de saúde, visando influenciar políticas de saúde que defendam, protejam e promovam a saúde da população [9].



Neste sentido, a Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública tem desempenhado um papel activo na defesa de políticas de saúde pública, assumindo posições sobre vacinação [10], promoção indirecta ao consumo de álcool [11], saúde ambiental [12], alimentação saudável [13] ou organização dos Serviços de Saúde Pública [14]. Em particular, a criação do seu Grupo de Trabalho sobre Determinantes Comerciais da Saúde teve, entre outros objectivos, o de “exercer ações de advocacia pública e profissional no âmbito de políticas dirigidas aos determinantes comerciais de saúde” [15], reconhecendo a necessidade de intervir sobre os fatores comerciais que influenciam a saúde da população portuguesa. Naturalmente, muitas outras sociedades científicas e organizações não governamentais têm contribuído para o debate público, em diversos temas e formatos, na defesa da saúde dos portugueses [16, 17].


Ainda assim, o papel de advocate não se esgota nas ações de Sociedades Científicas e Organizações Não Governamentais; os Médicos de Saúde Pública têm, igualmente, um papel a desempenhar, seja a nível local, organizacional, nacional ou internacional. Esta actividade, porém, não está isenta de riscos: perda de credibilidade por percepção de enviesamento ou motivações políticas, potenciais consequências institucionais ou profissionais, ou incompreensão entre advocacy e ativismo por parte da população são alguns dos obstáculos identificados [18]. Estes factores, a par da escassez de formação específica nesta área, podem inibir o envolvimento dos Médicos de Saúde Pública em actividades de advocacy.


Apesar dos desafios, advogar por políticas baseadas em evidência é um catalisador de mudança, que contribui para dar visibilidade a problemas que afectam populações vulneráveis ou negligenciadas e para reforçar a confiança dos cidadãos na ciência e nas instituições [18]. A decisão de intervir publicamente deve, naturalmente, ser ponderada. É legítimo e necessário tomar posição quando a evidência é robusta, os riscos estão bem caracterizados e a omissão de intervenção tem consequências negativas claras para a população. Pelo contrário, a prudência impõe-se quando a evidência é incerta, o tema ultrapassa a nossa competência, ou quando outros estão mais bem posicionados para intervir [18]. A literatura identifica várias preocupações recorrentes sobre o envolvimento em actividades de advocacy. Entre elas, destacam-se dúvidas sobre os limites éticos entre advocacy e persuasão, o risco de sobrepor a saúde a liberdades individuais (tema amplamente debatido durante a pandemia de COVID-19 ou na revisão da lei do tabaco de 2023), e a incerteza sobre a efectividade destas ações [1]. Ainda assim, existe consenso sobre o papel decisivo que a advocacy teve em áreas como o controlo do tabagismo, a prevenção de lesões por acidentes rodoviários ou o combate ao VIH/SIDA [1].


Apesar do seu reconhecimento como competência essencial, a advocacy permanece quase ausente da formação dos Médicos de Saúde Pública, nomeadamente no Curso de Especialização em Saúde Pública. Urge, por isso, integrá-la no currículo e na formação ao longo da vida dos Médicos de Saúde Pública, dotando os profissionais de competências em comunicação, tradução do conhecimento, interação com decisores políticos e preparação para comunicar de forma efectiva com os media.


“Se não nós, quem? Se não agora, quando?” O mandato dos Médicos e dos Serviços de Saúde Pública é claro: proteger, promover e melhorar a saúde das populações. Não poderemos cumprir este compromisso sem assumirmos, com responsabilidade e competência, o nosso papel como defensores de políticas públicas em prol da saúde da população assentes em evidência e equidade. Advogar é parte indissociável do nosso compromisso com a Saúde Pública e com a saúde das populações que servimos.



Nota: Optou-se por manter os termos "advocacy" e "advocate", em vez de recorrer a traduções para português, por melhor captarem a abrangência conceptual e a complexidade inerentes a esta competência.


Declaração de interesses: Ana Beatriz Nunes é co-coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Determinantes Comerciais da Saúde da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública.






Ana Beatriz Nunes

Médica Especialista em Saúde Pública

Doutoranda em Saúde Pública, Especialidade de Epidemiologia

Escola Nacional de Saúde Pública, Universidade NOVA de Lisboa


CONTACTOS

Av. Almirante Gago Coutinho, 151

1749-084 Lisboa

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