Numa dimensão sem precedentes, a pandemia de COVID-19 expôs a vulnerabilidade dos Estados face à disseminação de agentes infeciosos e evidenciou a necessidade de políticas e estratégias integradas que visem o reforço da colaboração intersectorial no contexto da segurança sanitária mundial. A evidência desta necessidade ganha ainda mais força quando se tem em conta que a ampla propagação geográfica de doenças infeciosas constitui um problema securitário, tanto na perspetiva da segurança sanitária mundial como na perspetiva da segurança nacional e internacional, facto que é claramente amplificado quando se toma como referência o crescente número de surtos e epidemias de doenças infeciosas emergentes e reemergentes.
Neste sentido, observa-se que a evolução atual dos quadros conceptuais relacionados com segurança sanitária tende a consolidar uma abordagem mundial (no seu sentido geográfico), considerando o elevado potencial de transmissão transfronteiriça dos agentes infeciosos de ocorrência natural, acidental ou intencional. Facto que pode ser demostrado pela crescente relevância atribuída à temática da segurança sanitária (health security) nos documentos estruturantes da estratégia de defesa nacional dos Estados, reforçando o entendimento das emergências de saúde pública de âmbito internacional como problemas securitários.
Observa-se ainda que as práticas dominantes no âmbito da segurança sanitária pressupõem uma convergência entre objetivos dos sectores da saúde e da defesa, e em que a colaboração civil-militar é um meio para a sua realização, através da conciliação de esforços que visem a implementação de medidas nos domínios da preparação, deteção e resposta em tempo oportuno a emergências de saúde pública de âmbito internacional.
Em linha com esta perspetiva, a Organização Mundial da Saúde (OMS) sublinha ainda que o fortalecimento da arquitetura mundial da segurança sanitária exige um maior envolvimento do setor da defesa e, em especial, dos Serviços de Saúde Militar (SSM) nos processos nacionais conducentes à implementação do Regulamento Sanitário internacional (RSI).
Tendo presente esta realidade, têm sido promovidas diversas iniciativas pelo setor da defesa, com grande relevância neste contexto, que intersetam as áreas da saúde pública e da saúde militar, merecendo especial destaque as IV Jornadas Defesa + Saúde realizadas em dezembro de 2024 na Fundação Calouste Gulbenkian, que se revelaram, por si só, um momento assinalável de colaboração civil-militar.

Subordinado ao tema da “colaboração civil-militar no contexto da segurança sanitária mundial”, o referido evento científico acolheu mais de 200 participantes, militares e civis, oriundos das áreas da medicina, medicina veterinária, enfermagem, biologia, ciências farmacêuticas, saúde ambiental, proteção civil, direito e serviço social, entre outras, e assumiu-se como um espaço privilegiado de debate e a reflexão em torno da temática da articulação e colaboração civil-militar em áreas técnicas que apoiam a implementação do RSI.
Tendo como referencial condutor o documento publicado em 2021 pela OMS “National civil-military collaboration framework for strengthening health emergency preparedness: WHO guidance document”, foram apresentadas ao longo das várias sessões das IV Jornadas Defesa + Saúde boas práticas de colaboração entre os setores da saúde militar e da saúde pública para preparar e responder conjuntamente a emergências de saúde pública, permitindo identificar um vasto leque de necessidades e oportunidades à colaboração civil-militar no contexto da segurança sanitária mundial.
A partilha de conhecimento e a troca de experiências ao longo das referidas sessões contribuiu ainda, substancialmente, para a compreensão de alguns aspetos chave que fundamentam a argumentação de um maior envolvimento do SSM nos processos nacionais conducentes à implementação do RSI, e que de seguida se elencam.
Em primeiro lugar, o facto das operações essenciais de saúde pública, nos termos definidos pela OMS, constituírem um dos pilares do SSM das Forças Armadas portuguesas, atendendo à sua relevância para a saúde e bem-estar dos militares e para o planeamento e condução de missões e operações militares. A título de exemplo as funções desenvolvidas pelo SSM no âmbito da vigilância epidemiológica, da proteção e promoção da saúde, da prevenção da doença, do planeamento em saúde, da implementação de políticas de saúde, da gestão de serviços, da gestão e formação de recursos humanos e da investigação em saúde.
Em segundo lugar, o facto do SSM desenvolver, no cumprimento da sua missão, um conjunto de atividades conexas com áreas técnicas que apoiam a implementação do RSI. A titulo de exemplo, as atividades no âmbito da vigilância e controlo epidemiológico das doenças infecciosas desenvolvidas pelo Centro de Epidemiologia de Intervenção Preventiva do Hospital das Forças Armadas, as atividades no âmbito da segurança e defesa alimentar e das doenças zoonóticas desenvolvidas pela Unidade Militar de Medicina Veterinária do Exército e as atividades no âmbito da biossegurança e bioproteção e dos eventos químicos desenvolvidas pela Unidade Militar Laboratorial de Defesa Biológica e Química do Exército.
Em terceiro lugar, o facto das capacidades do SSM, bem como as demais capacidades militares, estarem ao serviço do Estado e da população, e, portanto, integrarem o acervo das capacidades nacionais globais. A título de exemplo, no contexto da segurança sanitária, o potencial uso dual da capacidade de medical intelligence do SSM ao serviço da capacidade nacional de vigilância epidemiológica, permitindo integrar a informação recolhida por esta ferramenta militar de intelligence com o universo de informação recolhida pelos setores da saúde humana, animal e ambiental, bem como permitindo uma efetiva avaliação conjunta dos riscos e ameaças decorrentes da propagação de agentes infeciosos e, consequentemente, uma eficiente resposta combinada face a emergências de saúde pública de âmbito nacional ou internacional.
Contudo, apesar dos argumentos referidos e exemplificados anteriormente, observa-se na prática uma participação marginal da saúde militar nos processos nacionais conducentes à implementação do RSI, facto que aponta para a necessidade de uma discussão alargada sobre os mecanismos de articulação e colaboração civil-militar existentes, e seu potencial de evolução, e que importa serem abordados e trabalhados no âmbito da elaboração do Plano de Preparação e Resposta Nacional a Emergência em Saúde Pública atualmente em curso, sob a coordenação da Direção-Geral da Saúde.

Sílvia Sousa
Médica de Saúde Pública
Divisão de Saúde Militar do Ministério da Defesa Nacional
Membro da Comissão de Coordenação da Elaboração do Plano de Preparação e Resposta Nacional a Emergências em Saúde Pública