10 de set de 2021

COVID-19: iniquidades e vacinação

Uma pessoa com mais de 80 anos, sem comorbilidades, infetada com SARS-CoV-2, que resida num país de baixo rendimento tem 5 a 6 vezes maior risco de morrer por COVID-19, comparando com uma pessoa com o mesmo sexo, idade e número de comorbilidades residente num país de alto rendimento. Nos países de baixo rendimento as pessoas infetadas têm maior risco de ver agravada a situação de pobreza em que vivem e as medidas de controlo da disseminação infeção têm fragilizado a economia e o tecido social destas, já frágeis, sociedades. Apesar disso, nos países de baixo rendimento menos de uma pessoa em cada 10 recebeu uma dose de vacina contra a COVID-19. Em Portugal 7 em cada 10 pessoas estão completamente vacinadas.

É sabido que, pela sua forma de transmissão, a infeção por SARS-CoV-2 ocorre mais frequentemente em meios sobrelotados, com menor capacidade de ventilação e condições de higiene. A dificuldade de manter o distanciamento físico aumenta o risco de infeção e a impossibilidade de as pessoas se isolarem, incluindo a impossibilidade de os trabalhadores se ausentarem do local de trabalho, impede a quebra das cadeias de contágio e aumentam o risco de infeção.

Sabemos, assim, que as pessoas com menor rendimento - habitualmente aquelas com menores níveis de escolaridade - têm maior risco de infeção por SARS-CoV-2. Ainda, estas pessoas tendem a ter maior risco de sofrer consequências mais danosas para a sua saúde: a menor literacia em saúde, a malnutrição e/ou obesidade, o consumo de tabaco, a exposição ambiental a poluentes e a exposição crónica a níveis elevados de stress, assim como o pior acesso a cuidados de saúde, levam a uma concentração de doenças cardiovasculares, diabetes, doenças pulmonares e doenças concológicas nestes grupos, as quais os colocam em maior risco de morbi-mortalidade por COVID-19. A perda de produtividade durante a doença aguda ou devido às suas sequelas, ou a perda de um elemento do agregado familiar coloca, consecutivamente, um maior risco social e económico para as estas pessoas e para o seu agregado familiar.

O que aqui se descreve é um exemplo quase decalcado da definição de iniquidades em saúde: as diferenças do estado de saúde que sistematicamente prejudicam os mesmos grupos, adicionando à já existente desvantagem social e económica uma desvantagem de saúde, que poderiam ser preveníveis e, por isso, são consideradas injustas.

Estas iniquidades são observadas não só localmente, mas sim também entre países. Países de baixa renda tendem a ter uma maior proporção da população que vive e trabalha em condições que favorecem a transmissão de SARS-CoV-2. Nestes países, não só a transmissão decorre agilmente, com valores de incidência que apenas não são mais elevados pelas limitações no diagnóstico e no rastreio de contactos, como as consequências para a saúde são mais frequentes.

O pior estado de saúde e o escasso acesso a cuidados de saúde adequados – com exceção de pequenos grupos pertencentes às classes mais altas - aumentam o risco de doença grave e de morte. Os países de baixa renda têm um maior número de mortes por COVID-19, entre os infetados, mesmo ajustando para sexo, idade e níveis de cuidados de saúde. Ainda que a letalidade possa em parte ser explicada pela baixa testagem de pessoas pauci ou assintomáticas, as diferenças são marcadas: uma pessoa com mais de 80 anos, sem comorbilidades, infetada com SARS-CoV-2, que resida num país de baixo rendimento tem 5 a 6 vezes maior risco de morrer por COVID-19, comparando com uma pessoa com o mesmo sexo, idade e número de comorbilidades, residente num país de alto rendimento. As pessoas infetadas têm maior risco de perder rendimentos e agravar a situação de pobreza em que vivem, o que agrava o seu bem-estar social, mental e físico.

Nos países de baixo rendimento, até à data (31 de agosto de 2021) menos de 2% da população recebeu uma dose da vacina contra a COVID-19, menos de uma pessoa em cada 10. No entanto, em Portugal 7 em cada 10 pessoas estão completamente vacinadas. Estas discrepâncias não se devem a hesitação vacinal, receios sobre a segurança ou efetividade da vacina, ou até a diversidades culturais, mas ao facto de os países de baixo rendimento não terem sequer acesso a vacinas.

As pessoas que vivem nestes países não só têm pior estado de saúde e piores condições de vida, maior risco de se infetar ou morrer por COVID-19, mas também menor acesso à tecnologia que os protegeria contra a infeção e a doença. Estas vacinas permitiriam poupar anos de vida saudáveis perdidos pela COVID-19, e reduzir parte da incidência da infeção, o que permitiria aliviar algumas medidas mais severas de controlo da disseminação da infeção que têm fragilizado algumas destas sociedades. Como exemplo, estima-se que 77% da população da Etiópia, Uganda, Malawi e Nigéria – 256 milhões de pessoas – poderão ter sofrido perdas de rendimento ao nível do agregado familiar desde o início da pandemia.

Urge, assim – seja por um dever ético e moral de querer poupar vidas, seja pelo interesse egoísta de querermos prevenir a proliferação de novas variantes em contextos onde a transmissão ainda ocorre de forma muito ágil – pensar na estratégia de vacinação contra a COVID-19 para proteção da nossa população, mas também além-fronteiras, e assegurá-la. Até lá, falhamos moral e tecnicamente: alimentamos este hiato “grotesco” de mortes e morbilidade onde estas poderiam ser poupadas, e facilitamos o surgimento de novas variantes que poderão ameaçar o tão congratulado sucesso da vacinação dentro de portas.


 
Teresa Leão

Médica de Saúde Pública e perita no Conselho Nacional de Saúde

Investigadora no Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto

Professora auxiliar convidada na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto